Como o trabalho remoto pode destruir a cultura da sua empresa

Existe um grande barulho em torno da ideia de que o trabalho remoto “veio para ficar”, mesmo após o esperado fim da pandemia. Redução de custos e aparente facilidade de adaptação impulsionam esta onda. Jack Dorsey, CEO do Twitter, informou que a possibilidade de trabalhar em casa será permanente para aqueles que preferirem o modelo e estiverem em cargos que permitam o trabalho remoto.

Em outro pólo, Reed Hasting, CEO da Netflix, disse querer que seus colaboradores voltem aos escritórios assim que possível, porque a redução dos contatos sociais e as longas horas de exposição às telas estão matando a cultura corporativa de sua empresa. Satya Nadella, CEO da Microsoft, argumenta que o trabalho remoto não tem benefícios importantes que estão presentes no escritório, pois as reuniões por video são mais transacionais, e o trabalho (de verdade) acontece antes e depois das reuniões.

Há fortes evidências de que o trabalho distribuído – parcialmente presencial, parcialmente remoto – será parte importante do design organizacional de agora em diante. O que não parece estar nos radares das lideranças é o impacto que o modelo a ser adotado terá sobre a cultura organizacional. Assim, antes de embarcar na próxima grande onda, é fundamental que se tenha clareza da cultura organizacional desejada – seus princípios e atributos, o significado e a forma de desenvolvimento de lideranças, o modelo de gestão e o design estrutural – para que se avalie qual o modelo de trabalho distribuído que melhor impulsionará esta cultura. De outro modo a organização será – mais uma vez – refém de um efeito rebanho, com custos de longo prazo bem maiores que a economia de aluguel dos espaços físicos dos escritórios.

Quais são os principais impactos do trabalho remoto para a cultura organizacional?

Video-fatiga e controle

O mais direto impacto percebido atualmente é no corpo físico e emocional: a fatiga das videoreuniões. Em ambientes sociais presenciais nosso sistema sensorial está conformado para lidar com muitas informações não-verbais, com a opção de escolha de um foco de atenção, ao mesmo tempo em que atenção periférica permanece atuando sem gasto extra de energia.

Nada disso está presente em video-reuniões. É preciso um esforço continuado de foco para extrair informações relevantes e permanecer engajado, não há pistas comportamentais não verbais, é difícil saber de quem é a vez de falar, o compartilhamento de tela esconde as pessoas. Alguns especialistas ressaltam a sobrecarga causada pelo contato visual contínuo (olho no olho) quando as ligações são um a um.

A Microsoft fez um estudo[1] que evidencia a presença significativamente alta de ondas cerebrais gamma e beta (associadas ao estresse) a partir de 20 minutos em uma videoreunião, levando à fatiga a partir de 30 a 40 minutos. Em uma agenda diária repleta de videoreuniões o estresse se instala com duas horas de trabalho.

Talvez a pergunta seja se há de fato necessidade de um número tão grande de reuniões. Ouvi relatos de casos em que a insegurança trazida pela falta do ambiente presencial – onde se pode enxergar a equipe e o trabalho – provocou a angústia de “saber o que está acontecendo”, e a video-reunião é o único o canal disponível. Também houve multiplicação das sucessivas etapas de preparações para decisão (o “pré-comitê do pré-comitê”). São indícios da pervasiva mentalidade de comando e controle: tendo sido o porto seguro dos gestores, é o hábito para onde correm em momento de insegurança extrema.

A permanência desta mentalidade em um ambiente remoto demandará uma quantidade ainda maior de reuniões, com consequências prejudiciais à saúde mental de todos. O trabalho distribuído poderá ser mais saudável em uma arquitetura organizacional orientada pela autonomia e autogestão, com a consequente desburocratização dos processos decisórios.

Figura 1. Estresse em reunIões remotas [1]
Figura 1.
Estresse em reunIões remotas [1]
A perda de vitalidade das relações

Quando entramos em um escritório ou uma fábrica existe uma enorme gama de informações que denotam a cultura presente naquela organização. Estabelecidas de forma consciente ou não, funcionam como um mapa para o que é importante e relevante. A forma de organização das estações de trabalho, diferentes tamanhos de mesas, a existência de salas, a existência de portas, os espaços de conversa e café, a pintura, os murais, a maneira como se reserva a sala de reunião, a maneira como são (ex)incluídos os prestadores de serviços de limpeza, se as plantas são artificiais ou naturais, câmaras de segurança, crachás que abrem todas as portas e crachás que não abrem outras portas, andares de diretoria, gente falando baixo que fica quieta quando o chefe passa… são todos símbolos da cultura da organização.

Consideramos o nível de relações de uma organização a dimensão onde residem as interações entre pessoas, o clima, a motivação, a energia emocional. Esta dimensão se nutre destes símbolos da cultura, para que, nas interações, as pessoas se adequem e saibam que estão adequadas, saibam que são pertencentes ao grupo – algo fundamental para o ser humano desde as cavernas. Com a desmaterialização das organizações todos estes símbolos desaparecem ou ficam muito tênues, como ilustra a figura abaixo.

Figura 2. A perda dos símbolos presenciais
Figura 2. A perda dos símbolos presenciais

Por conta da mediação tecnológica e da falta de um espaço físico compartilhado as interações são muito impactadas:

  • diminuição da profundidade: as conversas vão direto ao ponto para execução/decisão;
  • diminuição da abrangência: apenas as reuniões mais objetivamente necessárias serão
    agendadas;
  • diminuição de variabilidade: raríssimas serão as interações casuais, que possibilitam a
    famosa serendipidade.

Estes impactos levam a uma grande perda da vitalidade na dimensão das relações. Neste ambiente os líderes passam a concentrar em si mesmos quase que integralmente a responsabilidade de conduzir e expressar a mensagem implícita e explícita da cultura desejada para as equipes. Adicionalmente, precisam se esforçar para compensar, da melhor maneira possível, a falta de vitalidade das relações – normalmente por meio de mais vídeoreuniões (!).

Fica evidente a fragilidade a que está exposta a cultura organizacional, como percebeu Hastings. Os desvios indesejados na cultura serão proporcionais à falta de coerência e conexão entre os líderes da organização.

Liderança emergente em ambientes virtuais

A história do desenvolvimento das organizações apenas nas últimas décadas começou a registrar contextos virtuais de trabalho, mas a pandemia rapidamente realçou a relevância que a virtualização pode ter no surgimento e desenvolvimento de lideranças.

Estudo publicado recentemente[2] compara ambientes de alta e baixa virtualização. Em ambientes presenciais as pessoas usualmente associam características de atribuição (percepção de traços e imagem) à liderança. As lideranças que emergem tem características relacionadas à inteligência, extroversão, confiança, competência aparente. São pessoas que inspiram, guiam, e contribuem para uma mentalidade de busca de inovação.

Por outro lado em ambientes de alta virtualidade as pessoas tendem a associar características de realização à liderança. O que mais parece importar nestes ambientes é a realização das tarefas, a entrega dos objetivos, a organização e encadeamento de atividades.

Assim a característica da liderança que naturalmente emerge em ambientes mais virtuais é de pessoas que monitoram progresso, fazem acontecer, coordenam ações, reduzem conflitos e ajudam os outros. São pessoas com aspirações claras, muito competentes na execução.

No limite, o ambiente de alta virtualidade pode induzir um comportamento com foco exagerado na execução, abafando o potencial de reflexão, inovação e adaptação da organização.

Há um ponto adicional: pessoas trabalhando em ambientes subordinados à métodos ágeis parecem vincular o termo “ágil” com a boa capacidade de operar em ambientes remotos/digitais: é um símbolo de pertencimento que gera uma pressão de grupo para conformidade, e exclui potenciais problemas críticos de interação, podendo minar a autonomia e criatividade do time. Em seis meses talvez os impactos passem desapercebidos, pois os objetivos e a urgência já estavam dados. Mas como se comportarão times sem maturidade emocional em um ambiente de continuada pressão?

A paisagem que se abre nas coxias por trás do iluminado palco do digital-ágil-remoto pode ser bem menos sadia: será que estes times terão a capacidade de gerar as inovações absolutamente necessárias para a sobrevivência da organização a médio prazo?

Figura 3. Características da liderança emergente
Figura 3. Características da liderança emergente

O ciclo do conhecimento e o sentir

A cultura organizacional é um caldo primitivo onde conhecimento é gerado. Sem conhecimento não há produto, não há serviço, não há negócio. O trabalho remoto (ou distribuído) tem alto impacto nesta dimensão da organização, pois a criação de conhecimento é um processo de natureza social, isto é, acontece por meio de interações entre pessoas, que, como vimos, podem perder muita vitalidade.

O processo de criação de conhecimento é um ciclo contínuo que converte experiências e descobertas individuais que contenham significado (conhecimento tácito) em informação agregada e objetiva que contenha valor para a organização (conhecimento explícito). O aspecto delicado deste ciclo é que ele exige socialização, interação, compartilhamento de imagens, linguagem, modelos e outras formas de expressão para que a conversão ocorra.

Embora plataformas remotas devam ser utilizadas como forma de apoio, é fundamental que existam ambientes físicos de suporte que sejam o “local onde os participantes compartilham contextos e criam novos significados por meio da interação” [4]. Quando tratamos de uma organização – com sua teia de relações e emoções em uma jornada de aprendizagem e sobrevivência – a ausência do junto, no sentido mais físico, pode ser grave, pois prejudica fortemente nosso sentir.

Temos como seres humanos três campos de interação com o mundo: no campo do pensar, mais frio e racional, absorvemos, registramos e organizamos as informações do mundo; o campo do sentir, mais volátil e quente onde lidamos com nossas emoções, nos coloca em relação como mundo; e o campo do querer é aquele que coloca as ações na realidade. É justamente o campo do sentir que sofre maior impacto com a virtualização exagerada, pois privilegiamos análises e decisões de ação, criando um vazio na ponte do sentir. O engajamento, o acolhimento, a sensação de pertencimento, são todos prejudicados. A possibilidade de encontrar o espaço de empatia – que requer um estado mais consciente de presença – fica muito reduzida, nos relegando à polarização antipatia-simpatia (não por coincidência tão frequente nas redes sociais).

O estar junto tem um valor inestimável para a vitalização do sentir. Observar junto, aprender junto, refletir junto. O junto permite o surgimento de insights coletivos que se transformarão em inovações. O junto mobiliza o quantum energético necessário para o desenvolvimento organizacional. Talvez o ambiente de alta virtualização produza uma quantidade incrível de informações, mas estas são apenas um dos componentes do conhecimento. Com menos junto teremos necessariamente menos criação de conhecimento – e menos inovação, menos adaptação, menos sobrevivência.

Com o trabalho distribuído será cada vez mais importante que a liderança possa aprender a organizar a gestão de forma híbrida, compreendendo diferentes naturezas de trabalho. Há processos que se beneficiam da possibilidade de virtualização (como é o caso de muitas funções comerciais por exemplo), e há outros em que estar junto é fator crítico para a vitalidade da cultura. Para estes é necessário criar os rituais de gestão apropriados. Se a presença física passa a ser uma opção escassa, há que se ter o discernimento para o desenho de uma arquitetura de gestão nova. A obtenção deste discernimento, alías, é um exemplo de processo co-criativo e coletivo, impróprio para ambientes remotos.

A cooperação e a saudade da oficina

Nossa capacidade de cooperar é muito maior e mais complexa do que querem crer as instituições, diz Sennet [5]. Nossa história mostra competências profundas de aprendizagem conjunta e cooperação. Porém estes tempos nos fazem pensar que toda a cooperação será melhor (mais produtiva?) se ocorrer mediada por plataformas tecnológicas. Isto é um engano.

O mesmo estudo citado anteriormente da Microsoft traz evidências de que a colaboração remota é mais desafiadora que a presencial, e padrões de ondas cerebrais associadas com estresse e sobrecarga são muito maiores na primeira.

A mediação por plataformas tecnológicas prejudica enormemente a cooperação, pois estas são desenhadas – e assim limitadas – pelo seu próprio código de projeto, escrito por pessoas direcionadas pela crença da objetividade. São plataformas moldadas pela objetividade linear que não dá conta das complexidades que se desenvolvem através da cooperação. Naturalmente há um viés que favorecerá aquelas pessoas com forte pensamento analítico, racional. Como poderemos cuidar do equilíbrio de aspectos imaginativos e intuitivos trazidos por outros perfis de profissionais? A cooperação é muito mais rica quando pautada pela dialógica – “um processo de troca em que as pessoas se conscientizam mais de seus próprios pontos de vista e ampliam a compreensão recíproca”.

Estas plataformas tem foco na informação, quando é a comunicação – com toda sua subjetividade – que nutre e enriquece a cooperação entre pessoas. Ao mirar a objetividade e prescindir do contexto, estas plataformas podem induzir ao risco da perda de significado, o que inibirá crescentemente a cooperação.

“A prática em comum de habilidades técnicas fortalece os elos sociais”. Por isso é tão habitual vincularmos as palavras cooperação e comunidade. Por isso temos saudades da cooperação na “oficina” – aquele momento em que uma prática conjunta produziu um novo resultado, e a sensação de presença e sentido eram palpáveis. Pode ter sido o momento de um trabalho em grupo na escola, ou de um novo produto no squad. Este tipo de sensação nos fortalece como seres humanos. Sem estas experiências nos aproximamos rapidamente de voltarmos ao estágio de recursos (humanos).

Cooperar na oficina cria comunidades, feitas por pessoas. E a Cultura é uma comunidade.

Conclusão

A implantação do trabalho distribuído trará novos modelos de design organizacional, novas formas de relacionamento, e novas possibilidades de expansão geográfica e inclusão social. Porém trará também enormes desafios para as organizações, causando impactos profundos na cultura organizacional que mais tarde emergirá. Como líderes é nossa responsabilidade avaliar estes desafios.

A Cultura não é um objeto controlável, mas um processo dinâmico e complexo. O melhor que as lideranças podem fazer é buscar induzir este processo no sentido desejado. Mas para isso é necessário determinar este sentido. Quais são os pilares e atributos de nossa cultura que a tornam coerente com nossa estratégia e marca? Qual é o significado e o papel de nossa liderança nesta jornada? Como este caldo gerará as competências essenciais para que possamos nos adaptar e desenvolver?

É crítico construir uma visão coerente e compartilhada da cultura desejada para permitir o desenho de um modelo de trabalho distribuído que a potencialize.

Marcos Thiele
Outubro, 2020.
 

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